Na última reunião da Associação Mineira de Apoio às
Pessoas com Neurofibromatoses (AMANF) um casal trouxe a questão se a fé
religiosa poderia afetar o desenvolvimento da doença.
Sabemos que boa parte da população brasileira tem
algum tipo de fé religiosa e a maioria é formada por cristãos (católicos,
protestantes, evangélicos e espíritas), portanto, esta é uma pergunta
importante e deve ser considerada. No entanto, é interessante notar que em mais
de uma década de participação nestas reuniões mensais da AMANF é a primeira vez
que me recordo deste tema ter sido colocado em discussão.
A possibilidade de a fé religiosa afetar a nossa
saúde tem sido defendida por pessoas que acreditam que existe algo além da vida
material. Por causa disso, alguns cientistas já tentaram estudar de forma
objetiva se a fé, orações e procedimentos rituais religiosos poderiam mudar o
curso das doenças. Os estudos científicos que pude ler até hoje não conseguiram
demonstrar qualquer efeito físico (benéfico ou maléfico) sobre doenças
objetivamente diagnosticadas como cânceres, por exemplo.
Por outro lado, não conheço qualquer estudo científico
sobre os benefícios ou prejuízos da religiosidade de uma pessoa sobre a
evolução natural da sua neurofibromatose, portanto, não posso responder com
segurança sobre essa questão que nos interessa mais de perto.
Considerando as doenças em geral, sabe-se que ser
diagnosticado com uma doença que ameaça a vida (como um câncer) causa grande estresse
emocional e diminui a qualidade de vida. Há evidências de que o estresse
excessivo leva a resultados piores no tratamento, por isso, reduzir o estresse
mental é um dos objetivos dos tratamentos psicológicos e psiquiátricos. Algumas técnicas alternativas (yoga, meditação, etc.) também podem ser
utilizadas. No entanto, uma revisão recente destas práticas alternativas para reduzir o estresse mental não incluiu as atividades religiosas entre elas (ver aqui artigo completo).
Por outro lado, considerando os problemas de
comportamento (na NF1, especialmente), podemos indagar se a religiosidade teria
algum papel nas doenças mentais. Outra revisão recente publicada pela
Associação Brasileira de Psiquiatria (ver aqui o artigo completo) examinou os
resultados de mais de 3 mil artigos científicos sobre as relações entre
religiosidade e saúde mental. Os autores afirmam que há uma relação complexa
entre religiosidade e saúde mental e que não podemos concluir de forma simplificada
se a fé é “boa” ou “má”. Eles dizem que uma parte dos pacientes se beneficia
enquanto outra parte piora em função sua religiosidade. Ou seja, a preocupações
religiosas e espirituais podem tanto fazer parte do tratamento quanto do
problema. Eles concluem que são necessários mais estudos científicos para se
ter uma visão segura do assunto.
Em nosso Centro de Referência, parece-me que a
maioria das pessoas com fé religiosa aceita como “vontade de Deus” o fato de
possuírem uma das formas de neurofibromatose. Mesmo que não compreendam e/ou
não questionem o motivo divino para terem “recebido” a doença, reagem
positivamente na busca de melhor qualidade de vida, seguem os tratamentos
necessários e não se culpam demasiadamente.
Outras pessoas com algum tipo de religiosidade
percebem a doença como um castigo divino, perguntam-se o que fizeram de errado
e acreditam que somente as orações e a fé poderão “resolver” o problema “quando
Deus quiser”. Já ouvi, inclusive, a justificativa de que a neurofibromatose seria o resultado de erros em vidas passadas e a reencarnação com
aquela doença seria uma forma de expiação do pecado original cometido.
Infelizmente, estas crenças fatalistas, deixando
tudo “nas mãos de deus”, têm sido responsáveis por algumas famílias descuidarem do
acompanhamento clínico de doença, às vezes perdendo-se o momento certo para
fazer intervenções que poderiam modificar a qualidade ou mesmo salvar a vida da
pessoa com neurofibromatose.
Como sou ateu, acredito na vida como uma grande
maravilha da natureza, onde surgimos como seres humanos que precisam viver
em sociedades, para os quais a solidariedade e o respeito ao próximo são fundamentais. Eu
acredito que existe vida antes da morte
e por isso deve ser vivida hoje,
aproveitada para construir um amanhã melhor e respeitada sempre.
Penso, portanto, que os direitos de todos que devem ser garantidos,
inclusive o direito de acreditar ou não em religião. Minha função no Centro de
Referência e neste blog é apenas a de aconselhar e oferecer informações sobre as
neurofibromatoses, e por isso respeito as escolhas de cada pessoa sobre o que
deseja fazer com sua própria vida.
No entanto, especialmente quando se trata de
crianças, as quais ainda não alcançaram a maturidade para escolher se querem ou
não acreditar numa determinada religião, tenho a esperança de que a fé dos seus
pais ajude a medicina a cuidar delas e
não seja um obstáculo para sua felicidade.
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